07/02/13

Virtualmente estúpido

"Senhor Director: 
Há dias, no prelúdio do almoço, um dos pratos disponíveis despertou-me uma das mais idiotas crises existenciais de que tenho memória. Eu ainda pensei ter percebido mal, coloquei a hipótese de se tratar de um engano da senhora que servia a comida ou, em última análise, duma excentricidade da cozinheira que acordara mal disposta ou decidira inovar para tentar dar um novo rumo à sua carreira. 
Mas não. É mesmo um prato de “frango com molho de leitão”! Bem, eu estou a comer frango mas é suposto saber a leitão, numa espécie de adaptação à alimentação do conceito de contrafação que se enraizou no negócio do vestuário. É só vantagens. É mais barato, mais fácil de cozinhar, pode preparar-se para poucas pessoas e, como as galinhas têm cabeças e patas menores que um porco, o desperdício é menor, ou seja, é quase como comprar um leitão todo ele feito de costela! Desculpem mas isto é genial! Como é que ainda ninguém tinha pensado nisto!? E mais: as variantes ilimitadas desta nova técnica de cozinha tornam-na uma ideia tão versátil que, estou seguro, fará sombra à mais sofisticada edição da Bimbi que possam imaginar. 
Se não vejamos: só é preciso encher a arca congeladora de frangos e apetrechar a dispensa com uma variedade de molhos a gosto. Se me apetecer comer caviar, basta descongelar um frango, cozinhá-lo e dar-lhe umas pinceladas do molho respectivo! Para tentar algo diferente podemos sempre cozinhar um dito e untá-lo com molho de javali. Ou, na época da caça, regressar a casas de mãos a abanar mas impressionar a família com um belo frango com molho de coelho! Com imaginação, só é necessário arranjar mais dois ingredientes base, como pescada e maçã, fazer um upgrade de molhos, e já temos tudo o que é necessário para confecionar qualquer petisco. Um delicioso salmão grelhado, ou melhor pescada grelhada com molho de salmão, com batatas cozidas. Até um magnífico robalo (pescada com molho de robalo) fica ao alcance de qualquer bolsa e deixa de ficar reservado para os dias especiais. 
Para sobremesa é só escolher. Manga? Ok, basta ir só buscar o molho, pegar na maçã e, qual passe de mágica, um pincel no lugar da varinha de condão e aí está a sobremesa que pediu! 
Ou eu estou a ficar velho ou… isto não faz sentido nenhum!!! Posso só, por favor, comer frango com sabor a frango!? Tem, por acaso, pescada com sabor a pescada? E maçã a saber a maçã, tem!? 
Acho que o mundo e a sociedade virtuais estão a aficar virtualmente estúpidos. Não se come frango ou leitão, come-se frango com sabor a leitão!
Os amigos não se encontram, saem. Os namorados não namoram, andam. Os casais não se casam, juntam-se; não se divorciam, separam-se; não se chateiam, dão um tempo; não têm amantes, têm casos. 
As pessoas não se amam, curtem-se; não fazem amor, comem-se. Uma pessoa triste não chora, medica-se. Uma pessoa alegre não festeja, embebeda-se. As pessoas não são felizes, aguentam-se… 
Acho que preciso de um chá para acalmar. Encho um copo de água quente, abro a gaveta dos chás –“Tília não, chá preto também não, cidreira não me apetece, e este o que é!?” Tiro os óculos, esfrego os olhos, volto a colocar os óculos, mas leio a mesma coisa: “Infusão de ervas com efeito Spa”. A palavra que me saiu não posso transcrevê-la aqui! Bem, mas sempre me fica mais barato do que pagar uma verdadeira sessão num Spa…" 
(“In” Cartas ao Director do Diário de Coimbra, de Paulo Freire, Eiras, Coimbra)